quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Notas para uma crítica das Políticas de Juventude

Erick Quintas Corrêa
Assessor de Políticas de Juventude do Município de Araraquara
O debate sobre juventude no Brasil é hoje um campo aberto, reflete a heterogeneidade de orientações e representações próprias da condição juvenil [1]. No campo das políticas públicas, ações voltadas aos jovens tem sido até o momento objeto de diferentes atores, orientadas sob perspectivas diversas e no limite, conflitantes. O conflito entre as diferentes concepções e abordagens do “juvenil” na esfera pública reside justamente na natureza conflitante dos distintos atores que formulam essas ações na sociedade.
É na década de 90 que a juventude emerge como tema e desafio à sociedade e ao Estado brasileiro, quando ganha peso na opinião-pública a preocupação social com as dificuldades e problemas enfrentados pelos jovens relacionados a processos de exclusão, principalmente em virtude da crise da Educação e do Trabalho como esferas construtoras de identidade. A explosão da violência juvenil emerge como seu sintoma mais imediato.
O assassinato bárbaro do garoto João Hélio no Rio de Janeiro e sua repercussão espetacular em nível nacional chocou todas as consciências e suscitou os mais apaixonados debates sobre o escândalo da delinqüência juvenil. Para resolver o problema da juventude, que se arrasta por décadas nos grandes centros urbanos do país, a classe economicamente dominante mobiliza a sociedade civil em torno da redução da idade penal.
Para a opinião pública brasileira, os interesses da classe dominante são os mesmos da sociedade civil (trata-se de uma mentira generalizada). Para manter a ordem capitalista e a ideologia do Consumo entre a juventude, a hegemonia da classe dominante sempre recorre à Moral culpando os indivíduos por suas ações, psquiatrizando a delinqüência juvenil (que é um fenômeno antes social do que biológico), taxando a juventude de problema cuja solução se resolve com mais entretenimento (reduzindo o tempo livre juvenil à atividades esportivas, culturais e de lazer) e com mais repressão e controle (FEBEM, repressão ao movimento estudantil nas universidades públicas, controle policial nas escolas públicas de ensino médio).
A juventude não deve mais ser tomada como assunto de Justiça, de Segurança Pública. A juventude deve passar de justificativa da ação pública para controle da violência à condição de sujeito da ação pública.
Essa nova perspectiva compreende a juventude como etapa singular do desenvolvimento pessoal e social do indivíduo e sugere, no campo das políticas públicas, ações articuladas intersetorialmente, que tomem o jovem como sujeitos integrais. Para Miguel Abad, tais políticas são afirmativas de direitos que visam a autodeterminação dos jovens.
Mais ainda, esse processo deve ser construído com a real participação da juventude: definindo o que constitui sua condição específica nesse momento histórico e quais são os direitos que garantem a vivência dessa condição satisfatoriamente.
Na trágica morte de João Hélio, é muito clara a oposição de classes que separa os protagonistas: garoto branco de classe média x jovens negros da periferia. A discussão moral em torno das características irracionais do assassinato são legítimas, no entanto, não devem camuflar a realidade do que está em jogo: as causas reais da violência, não suas conseqüências. Todos sabem que para resolver um problema é preciso atacar suas causas, e no caso específico da violência, as causas são visivelmente sociais: decorrem da extrema concentração de renda e do acirramento do processo de exclusão que atinge a juventude de maneira singular, anulando sua perspectiva futura e reduzindo sua vida presente aos imperativos da sobrevivência. Nem é preciso dizer que o projeto neoliberal posto em prática pelo governo FHC acirrou ainda mais este processo histórico, que no caso específico brasileiro assume contornos sociais catastróficos.
Antes mesmo de a sociedade perguntar a Deus “Por que um crime bárbaro como o de João Hélio ocorre?”, ela deve anteriormente formular uma outra pergunta: “Por que rouba-se um carro?”
A juventude pode tanto formular essas perguntas quanto oferecer suas respostas.
A sociedade reivindicou para a juventude primeiramente o papel de sujeitos de consumo, independente das diferenças econômicas e sociais que determinam seu poder de compra e que a atravessam em diferentes níveis e formas em sociedade. A juventude é também a grande vedete da cultura de massa, sendo constantemente padronizada e descaracterizada diariamente nos anúncios dos programas de TV, das novas modas tecnológicas e estéticas, dos novos produtos culturais, enfim: a juventude é dada como um valor em si mesmo. A valorização social da juventude, quando construída pela Mídia ou pela Indústria Cultural, a transforma em um segmento cujo potencial de consumo é altíssimo, e dessa forma deve ser mantido a todo e qualquer custo.
Juntamente às abordagens que concebem a juventude-problema, a juventude-solução e a juventude-sujeito, a juventude-vedete não pode deixar de ser mencionada, representada de forma notável pelo bordão de Humberto Gessinger: A juventude é (também) uma banda, “numa propaganda de refrigerantes.”
Juntamente ao fenômeno de “abortamento da infância” largamente difundido pela Psicologia e que surge no bojo do processo de valorização fetichista da juventude, outro fenômeno deve ser compreendido: a infantilização do mundo adulto, cujo desenvolvimento requer uma reformulação dos papéis sociais, principalmente do Educador. O ato que o consumidor adulto experimenta no momento do consumo assemelha-se muito ao infantil ato de imitação observável durante o desenvolvimento de qualquer criança.
A juventude sabe, mais do que ninguém nessa sociedade, do vazio e da angústia predominantes em nossa geração. Um vazio sem igual ao das gerações precedentes. Nossa educação, entregue à pedagogia confusa do Construtivismo pós-moderno, não forma ninguém para nada. A Educação Superior pública e gratuita no Brasil degrada-se à Educação Empresarial (voltada pro mercado) das grandes universidades privadas, formando uma multidão de profissionais que possivelmente não conquistarão vaga alguma no prometido mercado de trabalho.
Essa é uma situação nova, é um problema que demanda não apenas novas políticas, mas demanda também uma nova cultura política.
A UNICEF e a UNESCO lutam contra a aprovação da redução penal na Comissão de Constituição e Justiça do Senado federal, assim como as ONGs e demais entidades que tratam da proteção aos direitos da criança e do adolescente, como os Conselhos municipais, estaduais e nacional.
Essas mesmas organizações apoiam, seja financeiramente ou institucionalmente, o desenvolvimento de ações com a juventude não pela ótica do risco, mas numa perspectiva mais includente. Essa perspectiva postula aos jovens o papel de “protagonistas” ou de “atores estratégicos do desenvolvimento local”, sendo colocadas em prática por meio de projetos de voluntariado desenvolvidos por ONGs e financiadas por fundações empresariais. O eixo que guia essas ações centra-se na Participação dos jovens, apoiando-se em ferramentas pedagógicas como o Protagonismo Juvenil.
Contudo, cabe à própria juventude questionar o modelo de Participação ao qual ela deve integrar-se, que hoje se divide em duas formulações opostas, mas que partem de um mesmo princípio “participativo”: a participação-cidadã na construção de políticas públicas (jovem-sujeito) e a participação-empreendedora na resolução de problemas sociais locais (jovem-solução).
O Protagonismo Juvenil, na forma que vem sendo difundido por ideólogos como Antonio Carlos Gomes da Costa, difunde a ideologia dominante por meio do resgate confuso de diversas abordagens filosóficas, psicológicas e pedagógicas diferentes e até mesmo conflitantes entre si, servindo dessa forma, à defesa do atual modelo de desenvolvimento ao qual o jovem deve ser incorporado.
Essa concepção baseia-se em valores universais estáticos, sem que a compreensão acerca desses valores seja acompanhada pela realidade socialmente construída que determina, no limite, a construção de novos valores. O Individualismo, o Egoísmo e o Consumismo são valores dominantes certamente esquecidos pela perspectiva do jovem-solução. A “educação para valores” utilizada como metodologia de trabalho com jovens em situação de risco ou vulnerabilidade, busca emancipá-los do “mal” (que se tornou suas próprias vidas, a ponto de sugerir-se perigo à sociedade) por meio de uma ética moral que apenas reconhece como valores os valores identificados com o “bem” unitário, como a paz, o respeito, a responsabilidade ou a união, fechando os olhos para aqueles valores dominantes da ordem capitalista excludente que conformam sua realidade.
A perspectiva do jovem-solução o toma como fonte de Liberdade, de Iniciativa e de Compromisso. É preciso dizer que esses valores identificam-se apenas com as boas-almas da ética protestante e do espírito capitalista, conectando-se diretamente à lógica do Empreendedorismo Empresarial, confusamente adaptado a formulações que visam à “transformação social”. Nesse sentido, a juventude deve questionar-se: Que liberdade é essa? Iniciativa pra quê? Compromisso com o quê, com quem?
Além de tornar a juventude alvo do interesse público e privado apenas na medida de suas contribuições, em detrimento de suas demandas, esse enfoque responsabiliza o jovem por suas decisões, sem refletir sobre as reduzidas opções que este jovem experimenta em seu cotidiano. Esse modelo de “autonomia” é duvidoso e deve ser questionado pela juventude, de forma a corrigir o termo corrente nos moldes de uma semi-autonomia, de uma falsa liberdade.
Na abordagem do jovem-solução, a capacidade de transformação social da juventude degrada-se à individual “tomada de decisões”, desviando o sentido ontológico do ser jovem ao perfil empreendedor (e submisso) do homem de mercado.
Este enfoque recupera e desvia o sentido real de transformação atribuído à juventude pela experiência histórica da geração de 68. Ao invés de construir situações que se insurjam contra a ordem estabelecida, movimento típico da geração precedente, tal modelo propõe ao jovem apenas a tomada de decisões em situações dadas, construídas sem sua participação ou consentimento. É a falsa participação, é a escolha da juventude reduzida a opções mínimas e inquestionáveis.
Por outro lado, atores vinculados a partidos políticos e movimentos sociais também conduzem a juventude à Participação, centrando-se na idéia (mais fiel à geração de 68) de que o jovem constitui fonte constantemente renovada de crítica e contestação, de dedicação generosa à dimensão social e de capacidade de prover utopias (Abramo).
O enfoque da juventude cidadã (jovem-sujeito) tem sido um importante elemento de pressão para a formulação das políticas de juventude e tem surgido no Brasil sob a forma de assessorias, conselhos e coordenadorias de juventude. Segundo Marilia Sposito, esses novos organismos surgem - com maior incidência em grandes centros urbanos do país - a partir de 2001. No entanto, na maioria das experiências analisadas, a participação dos jovens do campo assim como suas demandas específicas são constantemente ignoradas pelo Poder Público.
Essa luta deve traduzir-se em mecanismos específicos que assegurem a participação democrática da juventude, inclusive dos jovens do campo, nos órgãos da gestão pública, de forma a fortalecê-los e legitimá-los como atores políticos, apoiando suas demandas e traduzindo-as em questões a serem pautadas na agenda pública [2].
O presente artigo não pretende, sob nenhum aspecto que aborda, encerrar a ampla polêmica que este debate suscita na sociedade brasileira. No sentido contrário, pretende apenas apontar alguns aspectos ideológicos que permeiam, de forma geral, as distintas ações voltadas à juventude no país.
Novas discussões e análises qualitativas acerca da condição juvenil e de seu “papel” na sociedade devem ser realizadas para que as ações do Estado e da sociedade civil voltadas ao jovem alinhem-se a uma perspectiva mais crítica, emancipatória e progressista.
Araraquara, maio de 2007.
Notas
[1] Enquanto categoria etária, convencionalmente tem-se utilizado a faixa etária que compreende dos 15 aos 29 anos de idade (conforme estabelece o Plano Nacional de Juventude de 2006), dividida em três subgrupos etários: de 15 a 29 anos, de 20 a 24 anos e de 25 a 29 anos. [2] Mais detalhes acerca desse processo no texto Iniciativas emergentes de políticas de juventude em nível local, in: “Juventude e Políticas Públicas no Brasil”, de Marilia Sposito e Paulo César Carrano (2003), disponível na internet para download no portal SCIELO.

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